CIUMEIRA
É, D. Totinha, tudo chega ao fim. Prematuro, algumas vezes, é verdade,
e, também verdade, sem culpa de quem opta por esse fim, como acabo de optar.
Mas isso não quer dizer que você seja culpada, Totinha. Espero que entenda as
minhas figas para a tentação de trair as matutas origens, daí eu viver livre de
remorsos, da mesma forma que a entendo quando vê no remorso tão somente um
sentimentalismo barato. Os recheios da modernidade, Totinha, não serão capazes
de diluir-me a naturalidade, de afastar-me das raízes da autenticidade. Para
você, contudo, são nesses fermentos que uma relação sobrevive. Fazer o quê?
Pontos de vistas diferentes não devem condenar ninguém, não é certo?
Tem culpa você se minha
teimosia em mudar-me fê-la abusar de mim? Dez mil vezes não, Totinha. Mas
sentir-se enfarosa
é uma coisa. É um direito seu. Ser desrespeitosa é outra coisa. É um defeito seu. Se não lhe dou mais prazer, por que então continuar a me acolher, a comprar-me no balcão dos velhos sentimentos? “O que não traz prazer não dá proveito”, dizia o velho dramaturgo inglês, o Chicopires. Você pegou carona no aforismo do mestre e vem me tascando indiferença, como a dizer que o que não dá proveito dá indiferença. Ainda que verdade, esse permanente pouco-caso constitui tremenda chicotada em meu lombo. Minha autoestima anda comparando a sua repulsa àquela dor que sentimos quando o cotovelo bate num objeto duro. Estou me sentindo o mais desprezível dos seres inanimados, Totinha.
é uma coisa. É um direito seu. Ser desrespeitosa é outra coisa. É um defeito seu. Se não lhe dou mais prazer, por que então continuar a me acolher, a comprar-me no balcão dos velhos sentimentos? “O que não traz prazer não dá proveito”, dizia o velho dramaturgo inglês, o Chicopires. Você pegou carona no aforismo do mestre e vem me tascando indiferença, como a dizer que o que não dá proveito dá indiferença. Ainda que verdade, esse permanente pouco-caso constitui tremenda chicotada em meu lombo. Minha autoestima anda comparando a sua repulsa àquela dor que sentimos quando o cotovelo bate num objeto duro. Estou me sentindo o mais desprezível dos seres inanimados, Totinha.
Olhe só como se comportou
hoje, Totinha, na boquinha da noite. Estávamos sozinhos em casa. Você,
lindíssima, destoalhada, pingando lascivos mormaços, saía do banheiro. Usava
volúpia em cima, no meio trajava luxúria, embaixo vestia sensualidade. Pena que
a água tenha lhe despido das boas maneiras, pois você fez de conta que não me
viu. Cadê o olhar de êxtase? Por onde andam aquelas mãos que acariciavam e me
fatiavam em benefício de seu arreganhado? De olhos, não é Totinha? E os lábios,
a boca, os dentes, a língua. Em suma, cadê a mordidinha básica e o “hum!” de
satisfação?
Sumiu tudo, não foi? Você,
Totinha, abandonou-me na mesa, deixou-me na esperança de ao menos um olhar de
desprezo e pôs-se a andar dum lado pro outro, celular nas ouças, falando pelos
cotovelos. Um olhar de desprezo é dez mil vezes melhor do que ser desprezado
por esse olhar. O seu gesto de não gesto foi extremamente desumano, Totinha.
Não me entenda mal, mulher.
Longe de mim pechinchar gratidão, esmolar carinho, mendigar amor. Isso é o
cúmulo da estupidez. Agora, respeito é bom e eu gosto, Totinha.
Bem, telefone ao ouvido,
você falava com uma amiga:
“E é, Tortímila? Acabei de
sair do banho. Vou me arrumar e correr praí. Qual é o piso mesmo? Tá, tá,
entendi. Pois diga! Não é isso! A mulherada adivinha essas coisas, sente o
cheiro, Tortímila. A entrada é livre, não é? E é? Francesa e alemã?”
Nesse ponto da conversa,
Totinha, parece que vocês se deram conta de um equívoco no endereço, visto você
ter se expressado assim:
“Ah, tá. Pois eu ia pro
Natal Chópin, Tortímila. Não vejo a hora de lhes dar uma abocanhadinha.
Terceiro piso do Miduei, não é?”
Essa abocanhadinha no Miduei
me doeu, Totinha. Sabe você que não tenho preconceito com certas atitudes. Cada
pessoa age como bem lhe aprouver. Mas sua gulodice internacional foi demais.
Então você fora incapaz de me dar bucólica lambiscada, mas alimentava o sonho
de debicar francesinhas e alemãs. Que ridículo, matutei. Ninguém merece!
Bom, você vestiu-se rápido e
saiu. Esqueceu-se até de desligar a TV. Fiquei pensando no canto de carroceria
que acabara de levar. Totinha não quer mais saber de mim. Enjoou-me, enojou-se,
enfastiou-se. Não me acha mais gostoso. Não quer me comer mais.
Nisso, a TV entra ao vivo,
do chópin. Vejo você lá, Totinha, rodeada de mulheres, um homem de branco a
lhes servir as tais tortas francesas e alemãs.
Tem gosto pra tudo, pensei.
Como é que uma criatura deixa de comer um bolo de batata, verdadeiro,
naturalíssimo, pra comer um melado seboso desses, meu Deus do céu? Saiba você,
minha nobre, que, no mais das vezes, o tanto de quanto e o quanto de tanto com
que é feito seu ilusório eretismo provêm das mais autênticas milacrias deste
mundo cheio de falsidade.
Daí, Totinha, eu ter escrito
esta carta de rompimento. Vou para outros braços. Ou para outras bocas. Não
contarei a quem me beliscar que sou um bolo traído. “De aniversário”, direi a
quem me sorrir; “feito de fidelidade”, falarei para os meus provadores; “assado
na gratidão”, direi a todos.
Foi bom enquanto durou,
Totinha. Até o dia do juízo final.
Fui!
Batatais Sirva
Obs. Entenda o contexto. O
pessoal que trabalha comigo sabe de minha “aversão” acerca desses
tradicionais bolos de aniversário. Então empurro bolo de batata neles. A
condição para saboreá-lo é a leitura de um texto. O deste ano foi esse que você
acabou de ler.
3 comentários:
Olá, Tião! Gostei muito do seu blog e dos seus escritos!
E viva toda vontade de potência literária!
Um abraço!
Cellina Muniz
Oi, Cellina,
Senti-me eufórico em saber que gostou de meu matuto blogue. E dos caipiras textos. Pena que não podido dizer a mesma coisa acerca do roceiro bolo de batata, já que dele não provou.
Terminei não indo ao lançamento de seu livro. Onde o encontro?
Um abraço,
Tião
Tião, acho que vou fazer outro lançamento lá na UFRN, dentro em breve. Mas enquanto isso, vc acha o livro no Sebo Vermelho. Gostei sim dos seus textos e achei uma grande sacada os "sobejos de literatura", o "espojando-se em palavras" e o "chafurdando as prosas".
Um abraço
Cellina
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