JANTAR EM FAMÍLIA
A conversa estava animada. Tomavam vinho, bebiam
sorrisos, sorviam prazer. Faziam hora pro jantar. Glorinha chega, troca a
toalha da mesa vizinha, pede licença:
- Trago logo o salmão ou a sopa, Dr. Paulo?
“O salmão na mão esquerda, a sopa na direita, minha
filha”, respondeu Dr. Paulo, liberando simpatia.
Glorinha sorriu e afastou-se. Mas ficaram o viço da
idade, o frescor do banho e o cheiro da colônia.
Essa garota não aprende nunca; só não mando ela
embora porque cozinha muito bem; de honestidade a toda prova; gente boa demais.
Esses foram os comentários que vaquejaram até a cozinha o rebolado da gloriosa
Glorinha.
Daí a segundos, sem mais nem menos, Paulinha beijou
a mãe, cochichou algo, levantou-se, deu solene boa-noite e subiu para os aposentos.
Em silêncio, Bezerra (conheça o Bezerra depois)
a acompanhou, mas ficou na soleira, porquanto Paulinha fez de conta que não o
viu e bateu a porta na fuça dele. Pai e mãe se entreolharam. Passavam poucos
minutos das sete horas daquele domingo.
Cedo demais
para se recolher, interrogavam-se todos.
“Caramba! O
que deu nela?”, especulou o irmão gêmeo, Paulinho, olhando para os parentes e
beijando o pescoço da namorada, Rita.
“Coisa de
mulher”, respondeu Dr. Paulo, o pai dos gêmeos.
“Por que de
mulher? Só mulher se sente indisposta, por acaso? Que coisa!”, irritou-se D.
Paula, tomando as dores da filha.
“Calma,
mulher. Fiz tão somente um comentário. Que coisa!”, estendeu a bandeira branca
Dr. Paulo, mas com um bastãozinho de riso.
Se por causa
do risinho safado, se
pela imitativa entonação do que coisa, se em razão das
duas coisas, não se sabe. Certo é que D. Paula pegou ar, levantou-se, quase
derrubou a nora, deu imponente boa-noite e foi para os aposentos.
“Nossa! Até
mãe? Essas mulheres. Sei não, viu, pai?”, brincou Paulinho, beijando o cabelo
de Rita.
- Que que tem
essas mulheres, Paulinho? O risinho irônico do senhor, Dr. Paulo, expulsou D.
Paula. Por pouco ela não me derrubou, viram? Culpa de sua insensibilidade, Dr.
Paulo. Os homens deviam prestar mais atenção na forma como se dirigem às
mulheres. Não viu você, Paulinho?
- Eu? Agora,
sim! O que eu disse demais, amor?
- Pois diga!
Essas mulheres. Sei não, viu, pai! Você falou assim, Paulinho. Abarrotado de
preconceito, o deboche saindo pelo ladrão.
- Não tive
essa intenção, amor. Que implicância (veja do que é capaz
a implicância) é uma, querida? O que devo fazer para me redimir?
“Esquece”,
disse Rita, levantando-se, dando pomposo boa-noite, abrindo a bolsa, andando
pro carro. Paulinho quase caiu, mas conseguiu abrir a porta do automóvel.
Saíram, certamente beijando-se ao contrário.
Dr. Paulo
ficou sozinho. Olhou pros lados e passou a arranhar o disco do “caramba, como
pode, não é possível, não mais de 7 minutos”.
“Ué! Cadê todo
mundo, Dr. Paulo?”, quis saber Glorinha, salmão na mão esquerda, sopa na
direita, vesga com a surpresa.
“Piraram,
Glorinha. Todo mundo pirou. Não vamos jantar. Guarde as coisas e me traga uma
garrafa de uísque”, lamentou-se Dr. Paulo, sorrindo sem graça.
Glorinha
sorriu de volta, graciosamente, é claro, e afastou-se. Mas ficaram o viço da
idade, o frescor do banho e o cheiro da colônia. Quem ficou também foi a
certeza de quem era a responsável pelo cancelamento do jantar: Glorinha. Essa
foi a conclusão a que chegou Dr. Paulo, enquanto escoltava até a cozinha o
cheiroso rebolado da gloriosa Glorinha.
Isso mesmo.
Mulher bonita é o cão, matutava Dr. Paulo.
Meu clássico
minha filha e o rotineiro gente boa do Paulinho injetaram ciúme nas três
mulheres. Brincadeiras que em outros momentos as abraçavam como simples
saudações, hoje estenderam a elas a escada da complexa frustração. Será que
perceberam tesão em nosso tom de voz? De minha parte, garanto que não saiu o
menor traço de desejo. Garanto? Também quem manda Glorinha vir nos servir
trajada de erotismo? Terão sido propositais o sonhador aroma da colônia, o
imaginativo vestidão soltinho, a enlouquecida voz de cama?
Pode ter sido,
sim. Mulher bonita é o cão, continuava matutando Dr. Paulo, quando avistou o
tristonho Bezerra, tal qual um cão sem dono, descendo a escada que dava nos
aposentos de Paulinha. Dr. Paulo acenou pro Bezerra e passou a recordar a
brincalhona conversa interrompida pelo “com licença” de Glorinha:
“São três
mentirosas, sim. Em primeiro lugar, você, Paulinha. Já viu atriz não mentir? Em
segundo lugar, vocês, Paula e Rita. Caso não mentissem, não seriam boas
escritoras, concordam? A diferença entre a mentira de vocês e a nossa, a dos
homens, é que mentimos da boca pra fora. E vocês, queridas, já formulam a
mentira na mente. A gente improvisa, vocês mentalizam. Mentem em pensamentos”.
“Ah, é? Fique
sabendo duma coisa, Dr. Paulo. Não há mentira, pai. A gente acredita no que
quer, entendeu?”, zombou do pai a filha.
Há uma
coisinha que não bate, voltou à realidade Dr. Paulo. A primeira pessoa a se
irritar e levantar-se foi Paulinha. Por que minha filha sentiria ciúme de
Glorinha? Estará ela debandando pro outro lado?
Bezerra
balançou o rabo, rosnou e latiu bem alto, como a reprovar a ideia do dono.
Dr. Paulo
balançou a cabeça, deu um grunhido de insatisfação e soltou estrondoso pqp. Em
seguida coçou o queixo, comichou o cabelo, imaginou o modelo. Olhou pra
piscina... Então os viu:
Pegos no
flagra da observação, Glorinha na frente, a galera correu em algazarra na
direção dele. D. Paula o beijou e desmentiu o pobre do marido:
- E aí,
querido. Estavas tão distante! Estarias a mentir? No pensamento, Paulo?
Dr. Paulo não tirava os olhos do zombeteiro
olhar da filha.
É isso, gente.
Abraços verdadeiros,
Tião
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