O DILEMA DE FÁTIMA
Naturalmente
bela e brincalhona, Fátima estava se achando feia e ranzinza. A culpa pelo
desconforto era daquele praga.
“Aquele praga”
era como Fátima se referia ao ex, conquanto ela própria relutasse em se
considerar ex, porquanto ficara dependente do praga sedutor. Qualquer sinal de
contrariedade e lá estava o solícito aos seus pés. Daí que cinco dias de
separação eram insuficientes para vê-lo somente na memória, pela boca do povo,
como se diz.
Fátima
decidira passar a semana santa na fazenda da avó. Via no sossego do campo
emplastros para a inquietude. Encharcara-se com a água da cisterna, vestira uma
roupa levíssima,
viera para o alpendre. Acomodou-se na espreguiçadeira da avó. Pensava como passaria o fim de semana sem a companhia do praga. Ouviu um nhenhenhém, fez compreensivo ar de riso, olhou em volta. Era Tonha. Tonha continuava reclamando dela e dos homens da casa.
viera para o alpendre. Acomodou-se na espreguiçadeira da avó. Pensava como passaria o fim de semana sem a companhia do praga. Ouviu um nhenhenhém, fez compreensivo ar de riso, olhou em volta. Era Tonha. Tonha continuava reclamando dela e dos homens da casa.
- Quem já viu
tomar banho nos dias grandes, D. Fátima! E vocês, moleques? Deixem para correr
atrás dessa maldita bola amanhã. Tenha piedade desses cristãos, Senhor! E a
senhora, D. Olívia, ainda fica rindo com a molecada desses moleques? Sostou a
senhora.
Fátima tirou a
atenção da resposta da avó. Ficara extasiada com o som de “te-vi” que partira
bem de sua frente.
A casa da
fazenda de D. Olívia, cerca de dois quilômetros da cidade, era verdadeira
mansão. Fátima estava na primeira cobertura, a piscina à direita, à esquerda o
bar, em frente uma mistura de jardim com fruteiras. O bem-te-vi pousou na
goiabeira, olhinho numa goiabinha verde, outro em Fátima, como a temer feminina
censura. Convencido da bela cumplicidade, o bem-te-vi reprisou o te-vi por
quatro vezes e passou a entoar a completa partitura. Calou-se um tempinho,
tornou a bicar a goiabinha, sacudiu o emocional de Fátima com romântico “bem” e
voou.
Que delícia,
enternecia-se Fátima, quando Tonha a ela se achegava. Desta vez para consolá-la
da suposta lamentação:
- Está
sofrendo, né, minha filha? Seu coração está em prantos. Percebi logo que
chegou, Fafá. Tem homem no meio dessa história, minha filha?
- Deixe-me
sozinha, Tonha.
- Oh, Fafá!
Confie em mim, querida. Sou macaca velha. Fez bem em vir pra cá. Sabe o que eu
fazia, já lavando as fraldas de vocês, a fim de esquecer certos diabos? Vou lhe
dar a receita. Banho com incenso, Fafá. Tá muito tarde, mas amanhã eu vou lhe
dar um incenso que é tiro e queda para tirar esse peste da mente. Esses danados
deixam a inhaca no corpo da gente, minha filha. Enquanto o cheiro ruim está
entranhado, a mulher, ou homem, tanto faz, fica sentindo o cheiro bom,
entendeu, Fafá?
Agora, Fafá,
esse sujeito deve ser um deus, um Adonis, como um de meus safados gostava de
dizer. Somente assim eu vou entender você ficar imaginando trocar por ele um
monumento de homem tal qual o seu noivo. Uma amizade tão antiga. Mas de sexo
entendo eu, você sabe. Nada me surpreende, querida. Saiu quantas vezes com esse
Adonis?
- Tá por fora,
Tonha! Nunca trairei meu noivo, Tonha. O deus de quem você fala está mais perto
de Tanatos do que de Adonis. Ah, Tonha, traga aí... Fátima cortou o pedido. Ia
pedir vinho, mas se lembrou de que o praga adorava beber vinho – ou ficar
bebendo - com ela. Vinho apenas aumentaria as recordações. Traga um cafezinho,
Tonha, completou, meio encabulada. Ou vai ou racha, pensou.
“Nunca? Nossa!
Amanhã eu preparo o banho, tá?”, disse Tonha, rindo, afastando-se, parando,
pensando, voltando-se:
Esqueceu-se da
lição do nunca, né, Fafá? O café já tá no fogo. Café torrado no caco, querida,
do jeito que você gosta. Tonha foi à cozinha, Fafá foi à memória.
Tonha é
sabida, gaba-se de ter lido Sócrates e uma tal de Tereza Filósofa. Mas o
conservadorismo religioso continua, riu Fátima. A religiosidade empurrou Fátima
para 15 anos atrás. Empurrou-a e imediatamente a içou, porquanto a angústia de hoje
tinha tudo a ver com aqueles fatos:
Fátima e os
irmãos foram para a festa da padroeira. Tinha 15 anos incompletos. Juntou-se
com as colegas, fofocaram, brincaram, curtiram. Bebeu, fumou, amassou – e foi
amassada – tudo pela primeira vez. Chegou em casa, tomou um banho de meia hora,
deitou-se.
Leve toc-toc
na porta, a clássica “quem é”, o tradicional “sou eu”, e Fátima abre a porta:
- Oh, Fafá.
Aconteceu alguma coisa com você, minha menina? Algum menino machucou seu
coraçãozinho, foi?
Era assim.
Bastava perceber algo estranho com Fátima e os irmãos que Tonha batia em cima.
Concordava, discordava, aconselhava-os. Explicava-lhes tudo sobre sexo, pois,
segundo ela, sexo era a chave da vida. Conversava mais com eles do que a
própria mãe dos meninos.
Daí a preocupação
daquela época.
- Nadica de
nada aconteceu, Tonha. Tem nada a ver com menino. Tá tudo bem.
- Tá tudo bem,
tá tudo bem! Então por que seus olhos brilhavam tanto quando você chegou? E
porque passou um século no banheiro? Se quiser ficar calada é um direito seu,
Fafá, mas...
- Ah, Tonha,
aconteceu um bocado de coisas pela primeira vez. Conheci um menino, diverti-me
à beça, mas ficou tudo bem, entendeu? Sabe, Tonha, nunca vou esconder nada de
você. Sempre vou lhe dizer a verdade.
- Nunca,
sempre, verdade. Evite essas palavras, D. Fátima. Como pode garantir que
nunca... Será que sempre... E você sabe qual é a verdade? Boa-noite e durma
bem, querida.
O cheirinho de
café intrometeu-se nas recordações dos 15 anos. Fátima voltou os pensamentos
para a casa da avó, olhou o tempo, agora nublado. Num ato de vassalagem, o sol
reverenciava os bocejos das nuvens. Fátima fechou os olhos, reviveu um dos
lances da festa, irritou-se. Por causa daquele lance é que até agora estava
sofrendo. Pelo rápido escurecimento, as nuvens haviam acabado o bocejo e
estavam se espreguiçando. A chuva os visitaria em minutos.
Fátima
levantou-se da espreguiçadeira. Tonha vinha chegando com um bule de café,
acompanhado duma bandeja de queijo com broa e sequilho, especialidades dela. Os
meninos também chegavam correndo da chuva. Por último, e em fila, chegaram
relâmpago, trovão e chuva.
Que cenário,
meu Deus, pensou Fátima, desconfiando de que sua pretensão iria por água a
baixo. Sob os risonhos protestos de Tonha, os meninos amundiçaram logo a
bandeja. Menos o noivo de Fátima, o Cazuza, que se postou às costas dela e a
beijou no pescoço, deixando-a arrepiada. Todinha.
Ali, Fátima
teve a certeza de que iria capitular. Adorava o noivo, derretia-se de paixão.
Ainda mais ele suado, alvoroçado, tronco desnudo, cheiro bom de macho a
invadi-la. Com os aplausos da imaginação, visíveis pelinhos se levantaram e
ouviram atentamente o discurso dos invisíveis.
Tudo
conspirava contra si e a favor da droga do cigarro. O peste que fumara pela
primeira vez, quinze anos atrás, na droga daquela festa, e que, havia cinco dias,
ela tentava largar, mas que agora a atormentava.
Sem saída, só
coube a Fátima se valer do irmão, o Fabinho, único fumante da turma, e
render-se ao praga do cigarro:
- Fabinho, meu
filho, você acende a praga dum cigarro pra mim?
Abraços
desfumaçados
Tião