O VIZINHO DA ESQUERDA
(Parede
e meia com o surreal)
Dos
vizinhos, só conhecem o som alto de músicas obscenas: o da esquerda sempre liga
o som às dez horas da noite e treze minutos. Mas quando vão reclamar, o som é
desligado. O peste advinha, brincam os recém-casados.
Até
que naquela tarde-noite de sexta-feira, estão se apeando da moto no momento em
que o vizinho está montando num táxi:
“Quero falar com vocês”, falou e desceu do
táxi.
“Que
homem mais feio”, atropelou-se na voz o casal, abraçando-se, como a antever
algo nocivo.
“Deve
vir se desculpar pelas músicas bregas”, segredou Gracinha, a cabeça de Jorge
concordando.
Em
segundos:
-
Preciso da conta bancária de um dos dois. Peguem logo esse dinheiro. Tem três
mil e treze reais aí”, anunciou o homem feio, entregando a Jorge um ligado de
notas:
-
Quê? Mas... Mas, senhor... Escute... Não
estamos entendendo... O senhor podia...
-
A conta, homem. Todas as noites escuto vocês fazendo planos para a reforma da
casa. Quero ajudá-los. Adorei o seu cinto, meu jovem. Agora me dê a conta.
“Não
podemos...”, gaguejou Jorge, mas foi brecado por encoberto beliscão, visto
Gracinha antever o verbo aceitar depois do podemos. Gracinha mudou o verbo:
-
Não podemos conversar dentro de casa?
-
Não. Estou atrasado. Vou me encontrar com uma garota de programa.
-
A casa precisa duma reforma, sim, mas, desculpe, o senhor não pode ter ouvido
nossos planos. Primeiro, não conversamos sobre isso. Segundo, mesmo que
tivéssemos o costume de conversar, o senhor não poderia escutar, desculpe de
novo, dado o seu som alto, embora as músicas sejam excelentes. De qualquer
forma, muito obrigada pela ajuda.
-
Meu som alto? A senhora está enganada. Passo a noite assistindo a filmes
pornôs, fumando maconha e bebendo. Agora, se me derem a conta, em minutos
transfiro o resto do dinheiro.
Gracinha
deu a conta. Deu logo a dela e a do marido. E os CPFs, por precaução. O feioso
saiu. Os bonitões entraram. Ficaram se olhando e caíram na risada.
Gracinha
e Jorge
são jovens e estão casados há dois meses. Moravam ali havia uma semana.
A casa precisava de boa reforma, diziam que era mal-assombrada, mas o baixo preço
compensara tudo. Fariam a reforma aos pouquinhos.
-
Viu o olhar dele, amor? Olhar de pua. Nossa! Engraçado, de perto, ele não
parece tão feio. Boiola, não é? Disse que ia sair com um garoto de programa. Se bem que...
-
Garota. Ele disse que ia sair com uma garota, Gracinha.
-
Garoto. Ele disse garoto, Jorge.
Os
dois começaram a teimar e entraram no mérito do assunto. Jorge achava que não deviam
ter aceitado o dinheiro, pois o vizinho devia ser empresário de drogas.
Gracinha alegava que não era crime receber presente. De mais a mais, traficante
algum iria se expor daquela forma. Mas concordaram em só mexer na grana quando
a autenticidade substituísse a perplexidade. Esperariam até... Não fixaram o
prazo, porquanto o celular de Gracinha emitiu um sinal de mensagem. Gracinha
leu e arregalou os olhos:
-
Veja aqui, Jorge. Meu Deus! É a transferência do homem. Quanto dinheiro! Ele é
seu xará, amor.
O
vizinho, Jorge Fortunato, transferira R$ 6.422,35 para a conta dela, Maria das
Graças. Surpresa maior chegou em seguida, pelo sinalzinho do celular de Jorge:
o mesmo valor fora transferido para a conta dele, Jorge Bezerra. E as surpresas
foram se sucedendo nas sextas-feiras. Seguiam a lei de acrescer os dígitos em
uma unidade. Dali a uma semana as contas recebiam R$ 7.533,46. Na outra, R$
8.644,57. Na seguinte, 9.755,68.
“Incomodados”
com a benesse, pensaram em passar a situação a limpo e, por algumas vezes,
bateram na porta do vizinho. Timidamente, é verdade. A conclusão era sempre a
mesma. Deve estar dormindo. Veremos amanhã.
Não
demorou muito e os espantos semanais começaram a parir espantalhos mentais:
Gracinha nem me chama mais pra ir ao
shopping. Só quer saber de comprar bolsa. Não sai do médico. Olhar de pua,
disse. Quer dizer, ela achou-se estraçalhada pelos olhos do vizinho. Tão
verdade que soltou um “nossa!” Tachou o cara de boiola, mas empurrou um “se bem
que”. Antevisão, quem sabe! Até a tagarelice de cama a mulher diminuiu.
Jorge nem faz mais questão de sair
comigo. Só quer saber de jogar sinuca. Não sai dos bares. O vizinho achou
bonito o cinturão dele. Quer dizer, sentiu-se imantado pela cintura de Jorge. Disse
que ia sair com um garoto de programa, mas Jorge afirma que o cara não é
boiola. Estratégia, quem sabe! Até mudo de cama o homem está ficando.
E
assim, dando papa a contextos, Jorge e Gracinha passaram doze sextas-feiras. Na
décima terceira, apeavam-se da moto no momento em que o vizinho descia dum
táxi:
“Preciso fazer uma proposta pra
vocês”, disse, cumprimentando-os com um aperto de mão. Jorge e Gracinha ficaram
de boca rachada com o aspecto do protetor: o maltrapilho vizinho
transformara-se no bem-arrumado Jorge. Convidado a entrar, o elegante acomodou-se
e não perdeu tempo:
- Obrigado. Sou paulista, tenho
quarenta e três anos. Morador de rua nos últimos dez, milionário há um ano,
condenado a morrer em quatro anos. Isso é suficiente, por enquanto. Se
chegarmos ao acordo, debulharei a minha vida. Vejamos a proposta:
Quero
que sejam meus secretários. Caso aceitem, espero morarmos juntos. Formaremos uma
família. Meus aposentos podem ficar nos fundos de nossa nova casa, assim me
sentirei mais à vontade para assistir aos meus filmes pornôs, acompanhados de
uísque e de minha maconhazinha.
Bom, o salário. Serão os rendimentos de nosso
patrimônio, posto sermos uma família e eu estar perto de morrer. Mas tudo depende
de aceitarem o último item da proposta: a senhora, Dona Gracinha, precisa ter
um bebê o mais rápido possível. Vou amá-lo, muito, viu?
Suponho
que estejam receosos da voz das ruas, haja vista o inusitado de patrão e
empregados irem morar num mesmo lar. O ser humano gosta de pegar morcego na
carruagem da vida alheia. Entendo isso, perfeitamente. Mas podemos contornar a situação. Como tenho a
idade de ser pai de vocês, faremos o seguinte. Em certos instantes, você,
Gracinha, pode me chamar de painho. Quanto a você, xará, posso chamá-lo de meu
filho.
“Então?
Concordam?”, indagou o filantropo, rindo pela primeira vez, mostrando ser de
ouro um dos caninos.
Gracinha
e Jorge ficaram encarando o vizinho por muitos minutos. Jogavam pãezinhos para os
contextos velhos, davam mingau aos novos, visitavam o passado. Assombração,
sociopatia, excentricidade? Tudo que a mente criava o cérebro avalizava.
Tiraram
a vista do vizinho. Mas não se encararam. Olhavam pro chão.
E
então?
Agosto/15
TC
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