O HOMEM QUE CALCULAVA
Senhoras e senhores, TC!
Estava de papo com uma amiga (de conversa, pessoal, num barzinho,
tomando uma de primeira cabeçada), então a sapeca me perguntou qual era o meu
método de criar mentiras literárias:
Todo o santo dia entro no teu blogue. Adoro tuas mentiras. Como
inventas aquelas coisas, TC?
Meu método é a intuição. Pego uma ideia, escrevo o primeiro
parágrafo e o resto vem no embalo, uma frase puxando a seguinte, respondi.
Mas como surge a ideia?
De todo canto, de onde menos espero. Sei explicar não, Silvinha.
Estás mentindo, discordou ela, o olhar jorrando ironia, o meu
latejando idolatria. Discordou e valeu-se das palavras de antigo professor – já
falecido. Segundo ela, o professor costumava dizer que era mentiroso quem
negava se valer dum esquema para escrever ficção. Se mentiroso não fosse, devia
escrever nada num contexto de nada. E ele escrevia bem. Metódico ao extremo, o texto
era consistência pura. O homem calculava tudo, TC.
Silvinha podia ter usado “O homem esquematizava, planejava,
estudava”, mas achou de usar “o homem calculava”. Arrepiei-me com a expressão,
porquanto acabava de ter uma ideia. Ia fustigar a Silvinha com amigáveis
deboches, mas limitei-me a rir e alimentar a ideia resultante do calculava: lembrei-me
do livro O Homem que Calculava e me vi relendo um de seus episódios, o
que se refere à divisão de 35 camelos. Daí veio logo a vontade de convocar o meu
primo Bião, o Intuitor, a fim de que desse a versão daquele fato.
Ei, menino! Travaste, foi! Estavas contanto os carneirinhos, era?
Não, Silvinha. Fazia outras contas. Fracionava belíssimo animal
cheio de curvas. Via-me admirando-lhe o violão do 1/8 no 1/2 de 1/4 de 1/3
de...
Silvinha calculou está sendo cantada. Do contrário, não teria me
interrompido e multiplicado o sorriso dengoso com um:
- Nojento! És um inteiro sedutor.
A conversa está ficando chata, reconheço, gente, mas preciso de um
parágrafo para o Homem que Calculava, embora esteja correndo o risco de
aborrecer quem já o conhece.
O Homem que Calculava foi escrito por Malba Tahan, heterônimo do professor brasileiro
Júlio César de Melo e Souza, e publicado pela Record, em 1938. O livro narra as
façanhas aritméticas do calculista Beremiz. É um livro porreta e está
disponível na internet. O texto dos camelos chama-se A Partilha, capítulo III.
Certo é que fui pra casa. Não de imediato, também é certo. Do
barzinho mesmo, liguei para o Bião e pedi a sua versão acerca da prosa do
Malba, a dos camelos.
Tenho-a pronta. Trata-se de politiqueira omissão do Malba Tahan, TC.
Vou mandar pro seu imeio a parte omitida. E mandou.
Vou copiar/colar A Partilha, do Malba Tahan, e em seguida a variante
do Bião. Se a Silvinha não mentiu, ao dizer que me lia todo o dia, verá que não
menti quando lhe disse que não esquematizo nada para escrever.
É isso, pessoal. Boa leitura.
A PARTILHA
Poucas horas havia que viajávamos
sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu
companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de
exímio algebrista.
Encontramos, perto de um antigo
caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de
um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos,
furiosos:
— Não pode ser!
— Isto é um roubo!
— Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou
informar-se do que se tratava.
— Somos irmãos — esclareceu o
mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade
expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma
terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não
sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta,
segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer
a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
— É muito simples — atalhou o
“homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se
permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa
hora aqui nos trouxe.
Neste ponto, procurei intervir na
questão:
— Não posso consentir em
semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o
nosso camelo?
— Não te preocupes com o
resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o
que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero
chegar.
Tal foi o tom de segurança com que
ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que
imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos
três herdeiros.
— Vou, meus amigos — disse
ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos,
que são agora, como vêem, em número de 36.
E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
— Deves receber, meu amigo, a
metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada
tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
— E tu, Hamed Namir, devias
receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto
é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na
transação.
E disse, por fim, ao mais moço:
— E tu, jovem Harim Namir,
segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e
pouco. Vais receber um nono de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente
notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.
Numa voz pausada e clara, concluiu:
— Pela vantajosa divisão feita
entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando —
couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um
total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como
sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter
resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.
— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e equidade.
— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e equidade.
E o astucioso Beremiz — o “homem
que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e
disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
— Poderás agora, meu amigo,
continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente
para mim.
E continuamos a nossa jornada para
Bagdá.
Vejamos o que disse o Bião.
Não
terminou assim a história, TC. Sucedeu o seguinte:
Enquanto
o irmão mais velho elogiava o Beremiz, o jovem Harim matutava. De forma que o Beremiz
foi puxado pelos fundos das calças quando montava no camelo:
- Ladrão.
O senhor é ladrão. Esse camelo não lhe pertence. Não entendo que bruxaria o
senhor fez, mas o certo é que está nos roubando. Tínhamos 35 camelos. Agora só
temos 18, mais 12, mais 4: 34. Os babacas dos meus irmãos...
- Mas
de que o menino está reclamando, se em vez de 3 camelos ficou com 4?
- Não
estou reclamando, estrangeiro. Só não quero que nos roubem.
- E o
que é que vai fazer com o camelo 35, jovem Harim?
- Ficará
com nós três. Faremos um rodízio anual. A fração de pai não é ½ para meu irmão
mais velho? Então o camelo passará 6 meses com ele, ½ dos 12 meses. Como a
fração do Hamed é 1/3, ele ficará 4 meses com o camelo. E eu fico com os 2
meses restantes.
- Mas
aí o jovem estará contrariando o pai, e afanando os irmãos, posto a fração 1/9
dos 12 meses ser menor do que dois meses. Tenho uma ideia. Explano-a se
permitirem.
-
Fale, estrangeiro.
-
Disputar o camelo na porrinha.
- Que
porra é isso, estrangeiro?
-
Cada um de vocês pegam três pedrinhas e colocam algumas na mão, sem que os
demais percebam quanto foram postas. Pode também não pôr nem uma. Daí estiram
as mãos e tentam adivinhar quantos pedrinhas somam nas três mãos. Quem acertar
ganha o camelo. Começa pelo...
Aí,
TC, o Beremiz explicou tudo. Como teste, passaram vinte minutos treinando, na
maior risadeira. Ficou acertado que o Beremiz participaria do jogo, pois seria
a forma de recompensá-lo pela ideia. O detalhe de quem pedia primeiro deu certa
teima, porquanto os irmãos achavam que os primeiros tinham mais possibilidade
de ganhar. Com baita sorriso, o Beremiz aceitou pedir por último. Primeiro pediria
o irmão mais velho, em seguida o do meio, e o caçula seria o terceiro.
Tudo organizado,
mãos fechadas, o irmão mais velho pediu 12 pedrinhas, o total em jogo. O irmão
do meio não titubeou. Meu irmão vem com 3 pedrinhas e, também com 3, optou por pedir
11. Igualmente lotado, o caçula fez um ar de desolado e tascou sonoro 10. Diacho,
alguém ferrou, avaliou o Beremiz, planejando o que faria com as suas 3 pedras. Beremiz
pôs a mão nos lábios, numa atitude meditativa, e as pedrinhas se acomodaram sob
a língua. Tem tudo pra dar 9. Uma coisa é certa: não vai dar acima de 10. Posso
não ganhar, mas... Beremiz pensou e ainda fez graça:
- É,
só me resta 9. Quero 9.
Mãos
abertas, 9 pedrinhas. Beremiz tratou logo de subir no camelo.
-
Parabéns, estrangeiro. O senhor é muito sabido. Donde o estrangeiro é? Aposto que
é das bandas das Américas.
O Beremiz
respondeu, TC, mas falou no idioma dele. Os irmãos entenderam apenas algo como
braseiro e Meca do Sul.
Setembro/15
cheio de beremizes,
TC
Obs.
Julgo que o inigmazinho dos camelos é do conhecimento de vocês. Contudo, para os
que não o conhece, ou que está com preguiça de raciocinar, vou dar um leia mais
a fim de decifrá-lo. Podia tê-lo decifrado aqui, mas adoro brincar com vocês.
O problema
é que a soma das frações do velho não dá um inteiro. 1/2 + 1/3 + 1/9 = 17/18. Ou
seja, sobra camelo. Mais precisamente 1 camelo e 1/18 de camelo. O resto é
artifício aritmético. Faça as contas, meu. Dei apenas o caminho.
O bicho
vai ser camelo. Joguem!
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