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A CAIXA
Cerca de quatro horas de uma tarde chuvosa, mercadinho vazio, a poeta
e belíssima caixa Laurinha abandona alguns objetos no balcão a fim de ler no celular
as prosas de um amigo. Faz um favor, na verdade, porque Laurinha gosta mesmo é
de poemas. Mas como aquela prosa fala de um amor repentino, ela julga encontrar
ali pedaços de molambos poéticos.
Quiçá pelo som da chuva, mas certamente pelo tedioso texto, certo
é que, ao não topar com os molambos poéticos, os olhos imploram repouso e as mãos
invisíveis do sono começam a fechá-los. Fecha não fecha, Laurinha dá uma
piscadela de apreensão com o pivete que, se caqueando, está se apeando de uma
moto na calçada do mercadinho: assaltante ou cliente?
Peço aqui um parágrafo a fim de justificar a apreensão de
Laurinha. É que na sua cidade, Natal, a população vive assustada em razão dos
assaltos. A cada dia mais penoso se torna o equilíbrio entre prudência e
naturalidade, já que prudência em demasia leva à neurose e, em excesso, a naturalidade
implica negligência. E Laurinha não contava as vezes que tinha visto motos e bicicletas
“assaltadoras” defronte do Mesa Farta. Achava até que havia se tornado cliente
de alguma delas.
Assaltante ou cliente, conjecturava a poeta Laurinha, quando as
pálpebras se fecharam de vez. E, como sempre acontece com os poetas, sono e
sonho se enrouparam com a magia da realidade. Mas há quem diga que a poeta
estava acordada e punha em prática os versos do Outro: “O poeta é um
fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que
deveras sente”.
Agora, a meu ver, Laurinha não estava
inteiramente desperta, mas sim em transe, ou em alfa, como nos explicava a querida
professora Renata. Até porque
Laurinha estava de ressaca. E ressaca, sabemos,
costuma potencializar a modorra.
Então, mesmo de olhos fechados, Laurinha continuava a ver o pivete
caminhando em sua direção. Acompanhava-o e, misteriosamente, via-o, aos poucos,
agigantando-se. Intrigada, fitou-o melhor. Não era mais o pivete. Era um homem adulto,
másculo, viril. Um homem lindo. Autêntico deus grego. Atônitas, as pupilas de
Laurinha exigiam explicação para o mistério. Emocionado, o homem captou o martírio
e, da cabeceira do balcão, pôs-se a falar, as mãos nas costas:
- Não acredito que não tenha me reconhecido. Brincadeira tem hora,
viu, mocinha? Como você está linda, Afrodite.
Engasgada com a visão, Laurinha ficou imóvel, literalmente babando.
Diante da inexplicável mudez, a decepção falou pelo homem:
- Acuda-me, pai Zeus. Tantos séculos procurando essa mulher, e agora
ela me acolhe com tamanha indiferença. Devo dar umas palmadas no bumbum dela?
“Hã”! Foi esse o som emitido pela Laurinha, boquiaberta com a voz sexy
do cavalheiro.
- Por Zeus, onde escondeu a gargalhada da paixão, Afrodite?
- Meu nome é Laura, moço. Laura, entendeu? Mas pode me chamar de
Laurinha.
- De onde tirou esse nome horroroso, Afrodite? Não suporto mais
essa conversa sem beijá-la. Ou mata o fingimento, ou a mato com beijos.
Laurinha ficou pensando. Até que a ameaça não seria má ideia. Mas
não devia incentivar a prática, já que o zum-zum-zum da vizinhança seria
eterno. De uma coisa, porém, tinha certeza: o bonitão era tantã. Zeus. Ele falou
em Zeus duas vezes. Chamou-o inclusive de pai. Laurinha já lera muito sobre mitologia.
Zeus tinha um filho de nome Apolo. Apolo, para muita gente, o deus da beleza. E
a Afrodite? A deusa do amor e da sexualidade? Sem dúvida, o charmosão
passava-se por Apolo e queria encontrar a Afrodite. Melhor entrar no jogo do
pirado:
Entre vácuos de escandalosa gargalhada, Laurinha falou:
- Como me encontrou, Apolo?
- Quer me matar do coração, Afrodite? Já estava pensando que você
tinha perdido a memória. Escuta só. Larguei a Vênus, porquanto queria você, no dia
em que se separou do manco e ciumento marido, o Hefaísto.
- Ciumento, mas não com você, Apolo.
- Comigo também, Afrodite. A verdade é que o Hefaísto nunca
engoliu a história de que éramos irmãos. Tinha ciúme, sim. Pois bem, corri o
mundo a sua procura. O problema é que não capturo o seu cheiro se estivermos
separados por oceanos, mares e grandes rios. Então, como o primeiro medalhista olímpico,
vim abrir a Rio/16. Aí, menina, sabe quem encontro na Vila Olímpica? A sua irmã
Helena. Papo vai, papo vem, a Helena me informa que você está morando aqui
nesta cidade linda, já percebi. Daí peguei um avião, aluguei essa moto no
aeroporto e seu perfume natural me guiou até aqui.
“Ah, tome”, disse Apolo, tirando as mãos das costas, entregando-lhe
uma rosa vermelha.
- Que romântico, Apolo. Obrigada.
- Bom, agora vamos embora pro nosso mundo. Está pronta?
- Sim. Deixe-me só arrumar essas coisas, tá?
Nisso, gente, como se aplausos do céu, barulhento trovão despertou
Laurinha. Um parêntesis. Lembrem-se de que chovia naqueles minutos.
Bom, Laurinha acorda e vê o sorriso dum belo moço, semelhante ao
Apolo, guardada as devidas proporções, mas de guardado proporcional, uma concha
de banana na mão direita.
“Ah, meu pai. Acho que cochilei. Desculpe, moço. Por que não me
acordou, Alex? Misericórdia”, envergonhou-se Laurinha, somando no computador
uma garrafa de aguardente, um pacote de limão, outro de laranja, presente dela
a uma amiga que estava aniversariando.
Outro parêntesis. Quando Laurinha adormece havia uns objetos no balcão,
lembram disso? Desculpe, leitor normal, mas preciso dos alertas por causa do
azedume de certo leitor chatinho. Ele vive me azucrinando em razão de detalhes
semelhantes.
- O rapaz não tem culpa, moça. Como apenas eu estava na fila,
pedi-lhe que deixasse cochilar. Você parecia estar se divertindo a valer. Angelical,
os lábios tremiam e chegou a babar, acredita? Sabe, moça, você se parece
bastante com a minha irmã, a Laura. A diferença é que minha irmã não é muito
bonita não. E é minha irmã.
“E é?”, gaguejou Laurinha, entendo o galanteio, aprovando o
galanteador, mas querendo passar tudo a limpo:
- Me diga uma coisa. Você desceu da moto e, se caqueando, se
transformando, caminhou pra cá. Pensei que fosse me assaltar. Você está armado?
- Sim, estou. Já que ficamos amigos,
vou me apresentar. Sou delegado federal. Meu nome é Apolinário. E o seu?
- Não somos amigos ainda, mas
certamente vamos ficar. Meu nome é Laura. Mas os amigos me tratam por Laurinha.
Como é seu nome mesmo? Não entendi.
- Apolinário, Laurinha. Mas os
amigos me tratam por Apolo.
- Quê?! Apolo!!!
Amoroso e olímpico agosto/16
TC, o cupido.
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