A VERDADE SOBRE A MENTIRA
Li tua prosa resolutiva, meu. Começaste bem,
mas terminaste de maneira desastrosa. Omitiste importante detalhe e foste
extremamente cafajeste no final. Palmas pra ti. Ganhaste o Nobel da cafajestagem.
Estou bastante chateada contigo, Flavinho. Só não termino nosso relacionamento porque
te amo. E não posso, essa é a verdade. Ninguém merece, Flavinho. Misericórdia.
Lembro-me de tudo, cara. Mesmo porque
não faz muito tempo. Aconteceu no hipermercado Prudente, a tarde de sábado
chamando a noite. Ambiente lotado, motoristas de carrinhos se acotovelando, avistaste-me
naquele corredor. Fingias-me não me dar atenção, mas a languidez do olhar te
denunciava.
Por fim, chutaste o fingimento e ficaste
me encarando. Lias-me, desnudavas-me. Chegaste a lamber os beiços. Fiquei
impassível, traço comum à minha origem russa. Sabias que lá... É melhor deixar
esse lá pra lá, Flavinho.
Sabes, Flavinho, não te entendi, juro. Ora
de ternura, ora de raiva, assim era teu olhar. Ora de fuga, ora de aproximação,
eram esses teus gestos. Parecia que aquela era a primeira vez que me levavas ao
teu apartamento. Ah, meu pai, o que deu no Flavinho, pensava eu. Pensava e me
lembrava
de outras vezes, tempos em que juntos passávamos momentos agradáveis,
quando chegavas ao delírio, não nos importando se a causa era grandes alegrias
ou pequenas tristezas. Não te continhas, teu comportamento ficava cambaleante.
Mas nunca levantei o dedo, a voz ou a tampa da censura. Pelo contrário, sempre
zombei de teus excessos e devaneios.
Como estava a dizer, encaravas-me com
olhares e gestos contraditórios. Então, nuns segundos de ternura, agarraste-me
com carinho, embora demonstrasse fraqueza, como se se render aos meus encantos
fosse pecado. Deixei-me levar sem uma palavra sequer, sem oposição, sem mostras
de alegria ou aversão. Apesar de eu estar aos olhos de todos, procuravas me
esconder a fim de que não reprovassem a nossa parceria. Estavas inseguro,
Flavinho. Não confiavas nem nos cabelos brancos, que, conquanto impusessem
respeito, poderiam despertar olhares repreensivos, principalmente de senhoras
aparentemente distintas que também aguardavam naquela fila do caixa,
aproveitando a oportunidade ociosa para julgar o semelhante. Estavas louco para
chegar ao apartamento, eis que em público, ou mesmo com amigos, receavas
censuras e chacotas. Jamais me exibiste aos outros, Flavinho. Tens vergonha, é?
Nossa! Precisas ser autêntico, assim como autêntica sou.
Suavas frio ao sair do meio daquela
gente. Foi tormentoso encontrar o caminho da saída, porquanto escandalosa a tua
ansiedade em ficarmos a sós. Estavas tão nervoso que ao ouvir um rapaz
conversando com um amigo logo imaginaste que eles falavam de
mim. Falavam sobre eutanásia, mas, na tua cabeça, eles se
referiam a mim, Anastásia. O ciúme te dominava, Flavinho.
Não devia tornar isto público, mas,
entre novinhos e coroas, prefiro estes. Novinhos são apressados e descuidados.
Coroas são experientes e cuidadosos. Infundado, portanto, o teu
ciúme. Não confundas fidelidade com exclusividade, Flavinho. Sou exclusiva tua quando contigo me aconchego. Mas a
exclusividade muda quando aconchegada com outro. Entretanto, sempre julgas que exclusividade a alguém exprime
infidelidade a ti. Desculpa a lavagem de roupa suja, mas estás a merecer
um banho dessa água, sim. Falo essas coisas em tese, pois sabes ser impossível
eu me separar de ti. E tu de mim. Mas...
Enfim, do lado de fora, sob uma leve e
fria chuva anunciando que outono se findava, chegamos ao estacionamento.
Apertavas-me com uma das mãos, como se estiveste temendo acontecer algo de ruim
comigo. Nada disseste, mas teu corpo falava isto: desejo-te junto a mim, quero
que sejas inteiramente minha.
O automóvel corria com o limpador de
para-brisa ligado e, a cada lapso de tempo em que durava a oscilação, davas-me
a impressão de que estavas diante de uma tela de cinema, a assistir memorável
filme, antevendo a dança dos lábios, o gole redentor, a intensidade dos
momentos futuros.
Chegamos. O apartamento bagunçado não me
causou surpresa, posto estar acostumada com a desarrumação. Iríamos para o que
viemos, mas antes optaste por relaxante banho quente.
Vibraste ao me ver roçando em ti, mas
tremias por não encontrar o jeito de rapidamente servir-se de mim. Por fim,
obteste sucesso e puseste os sedentos e apressados lábios em minha boca.
O prazer daquele momento foi para ti indescritível, dizia-me teu revirar de
olhos. Inegavelmente a primeira é sempre a melhor, não é, Flavinho? Finalmente
criaste coragem e, num relampejo de audácia, soletraste meu nome: A-nas-tá-sia.
Ficamos assim, num êxtase só, minha boca
na tua. Inicialmente, sugavas-me com ferocidade, com loucura. Mas foste te
contendo até atingir um ritmo lento, sem volúpia ou desespero. De vez em quando
nos separávamos por alguns momentos, quando então teus aforismos viajavam,
entravam no túnel do tempo e chegavam aonde somente eu conhecia. Dizias que
vivia muito bem, tinha uma família e amigos que te amavam sinceramente e que
não eras mais feliz por minha culpa, por eu ter me aproveitado de ti, de tua
fraqueza. Não tinhas forças, porém, para me abandonar. Agora era tarde, reconheceste.
Mas o tempo corre rápido e, rolando da
cama, boca a boca, desvairadamente, fomos nos encontrar no chão, derrubando velhos
móveis ou objetos que restavam naquele pequeno e imundo quarto. Gritos morriam
em tua garganta antes de serem ouvidos. O frenesi era intenso, até que
chegamos ao fim. A exaustão te fez adormecer, um sono nada calmo, apesar do
silêncio e do suspiro da noite. Despertaste abatido, arrasado, ainda que lúcido.
Ouvi bem a tua decisão: foi a última vez,
Anastásia. Não voltarei a te procurar, a levar-te aos lábios. Retornarei para o
que resta de minha vida. Promessa, sabes bem disso, feita por inúmeras vezes,
mas, agora, Anastásia, é real, sério, definitivo, tanto que...
Não li o porvir do “tanto que”, Flavinho,
parei a leitura e caí no choro. Quanta ingratidão, meu. Pagavas-me assim, criatura,
os momentos de prazer que a ti proporcionava. Pura cafajestagem, cara. Agora,
Flavinho, pressenti algo fora dos eixos quando omitiste os versos preliminares
do grande evento. Naqueles minutos, ficavas ajoelhado, olhavas-me sedutoramente
e falavas desta forma:
Um delírio divino, um momento sagrado,
conduzido num fluir tranquilo e suave, uma ondulação interminável, na qual
fazemos apenas o que deve ser feito um para ou outro. Assim nos comportamos,
Anastásia, mas és sempre a vencedora, pois costumas me levar além da fronteira
do êxtase e me direcionar para o plano sutil da experiência mística.
Ainda
chorosa, Flavinho, voltei à leitura. Jamais imaginaria ler a descomunal cafajestagem.
Retornei ao teu “tanto que”:
Tanto
que te vendo sobre o assoalho, caída
entre as paredes, vou te jogar pelo duto do lixo. Serás transportada para o
forno amanhã ou sei lá quando, pois não me interessa mais o teu destino.
Ficarei livre de ti, Anastásia, ó minha
provocante, arrasadora, maldita garrafa de vodca.
Garrafa de vodca! Então sou eu uma maldita
garrafa de vodca russa, infeliz? Fizeste os cultos incautos rirem da tua mentira,
Flavinho. Agora tenho a missão de te desmascarar. Vou contar a verdade.
Estou cansada de te ouvir me chamando de
Stella, Germana e da própria Anastásia. Jamais te recriminei, não foi? Agora, chamar-me
de garrafa de vodca é o cúmulo do desprezo. E ameaçar jogar-me no lixo? Nossa! Tenho
todo o direito de me indignar, mesmo sabendo que não podes viver sem mim. Não. Não
fui para o lixo, gente. Pelo contrário, voltamos pra cama.
Neste momento, só a verdade abafará o
meu soluço. E eis a verdade, amigos, colegas e família do Flavinho. Não sou uma garrafa de vodca russa. Sou - simplesmente - amante do Flavinho.
Sou amante do Flavinho, pois vivo me
enroscando nele. Sou confidente do Flavinho, porquanto ele viver me consultando
sobre as mais escabrosas situações. Sou concubina do Flavinho, porque me
relaciono com ele, o homem de outra mulher. Enfim, sou espingarda dele, amásia
dele, manceba dele, rapariga dele...
De mais a mais, não adianta alguém estrebuchar,
contorcer-se, espernear, já que, dado o nosso amor, apenas a moça Caetana do
Suassuna será capaz de nos separar. Minto. A Caetana nos levará juntos.
A verdade, pessoal, é que ninguém
conhece ninguém. Mais um pormenor, senhores boquiabertos com o comportamento do
Flavinho. Não me classifiquem de pedante por ter escrito este desabafo na
segunda pessoa do discurso. Caem-me melhor o rótulo da coerência e o selo da
intimidade. Por quê? Porque a verdade verdadeira é que sou realmente a segunda
pessoa dessa ingrata criatura.
Beijos, Flavinho,
TUA IMAGINAÇÃO
Outubro/16
TC
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