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A PRELEÇÃO COM O TIME DE CHAPÉU
“A vida é um jogo. Levante o dedo quem ainda
não ouviu ou pronunciou essa frase. E não sem motivos, meu anjo, pois ela espelha
o dia a dia dos humanos por meio da principal característica dos jogos: a
competição proveniente de interesses antagônicos”.
Dia a dia dos humanos? A humanidade toda? Não
está exagerando não, minha alma?
Não, meu anjo. Veja.
Nesse ponto, minha alma costuma me
dar um escrito. Leio-o e damos início às rotineiras discussões. Leia o escrito e
a gozação dela pra cima de mim:
Santa mãe! Até que enfim! Tô só o molambo. Que
solzão é um, meu Deus? Será que as cotoveladas valerão a pena?
Dá para perceber, meu anjo, que há mais guerra que amor na
fecundação? Sabia que, na base de pontapés e cotoveladas, você estava derrotando,
por baixo, 200 milhões de concorrentes? Vive consciente de que, ao sentir
aquele solzão, você acabava de vencer o mais duro desafio que a existência haveria
de lhe propor? Cabrinha de sorte, viu, meu anjo?
Foram
aos berros competitivos que os humanos viram o solzão, meu anjo. Então não tem
essa de exagero. A competição - e por decorrência as estratégias do jogo – vive
no DNA de vocês, sim. O que é bom, já que os livra da acomodação. Se as
cotoveladas valeram, estão valendo ou valerão a pena? Tudo vale a pena quando a
alma não é pequena. Viva a vida, meu anjo!
Ainda
bem que você não é pequena. Pensei em soltar a brincadeira, mas desisti, pois minha
alma apartou-se de mim e ajoelhou-se no pé da cama. Participava de rotineiro
jogo metafísico, fazia certa oração diária.
Minha alma adora jogo, gente. É imbatível
no jogo das palavras, usa a dez nos jogos transcendentais, bate um bolão num campo
de futebol.
Falar em futebol, minha alma só
torce por times verdes. Palmeiras em São Paulo e Alecrim em Natal, por exemplo.
Exceção é a Seleção Brasileira, já que
brasileiríssima ela é. A propósito da
Seleção, minha alma vive macambúzia desde a derrota do Brasil para a Alemanha. Sete
a um, lembram-se? Mas o desgosto não é por causa dos sete a um. A chateação é com
parte da imprensa. Falo no presente porque minha alma não passa sequer um dia
sem ficar sete minutos em oração meditativa. Justamente o que ora praticava.
Passado o momento da oração, minha
alma sempre expõe o motivo pelo qual vive chateada com a imprensa. Fala dando
cafuné no meu quengo:
Veja,
meu anjo. 7X1 é um resultado atípico. Mas apenas isso. Não há tragédia alguma nesse
fato, como setores da imprensa queriam. “Tragédia no Futebol Brasileiro”, manchetavam.
Tragédia é outra coisa, meu anjo. Precisamos ter consciência do poder das
palavras, entendeu? O 7, separado do 1 apenas pela cruz do X, exala maléfica e descomunal
força. Aí os caras acharam pouco e casaram a dupla com a dramaticidade, com o
terror, com o trágico. Com tudo, em suma, que de cruel existe na palavra
tragédia. O sete um, ou 71, é primo do caos e parente do desgoverno. Por isso,
para afastar esse tanque desastroso dos brasileiros, preciso ficar rezando por
sete anos, meu anjo.
Bom,
ao contrário de outras vezes, minha alma terminou de orar e não repetiu essa exposição.
Olhou-me meigamente (minha alma é linda, gente) e me aconselhou:
Quase
duas horas da manhã. Vá dormir. Vou lá fora fazer uma prece especial. Estou com
terrível pressentimento. Viva a vida, meu anjo!
Surpreso com a enigmática repetição
do “Viva a vida”, lembrei-me da pergunta predileta do grande ator Abujamra, no
programa televisivo Provocações, e sapequei-lhe.
O que
é a vida, minha alma?
Ela
soltou a tranca da porta, virou-se e sorriu. Sorriso de apreensão. Será que
minha alma não sabe o que é a vida? Ou será que...
Nisso,
ela olhou para o teto, empalideceu e aninhou-se nos meus peitos. Em prantos,
lamentava-se por ter falhado. Falhou em quê? O que foi, minha alma? Não respondeu, porquanto um senhor, o Sr.
Conforto, já estava nos abraçando com palavras balsâmicas. Olhei ao redor. Nosso
quartinho enchia-se de gente. Mas afora o Sr. Conforto, só reconheci a Sra.
Esperança e a Sra. Solidariedade.
Quem é
esse povo, minha alma? O Sr. Conforto respondeu por ela. Apontava e dizia o
nome. Memorizei alguns. Vestida de preto, a sombria Sra. Tristeza. Trajada de
cinza, a triste Sra. Consternação. De camisa vermelha, o deprimido Sr.
Acidente. De mãos dadas, o melancólico casal Adeus e Saudade. Único de terno, o
taciturno de bisaco, o Sr. Destino.
Todos
estavam de olhos aboticados para mim. Reverenciavam-me. Cada um a seu modo,
naturalmente. Não suportei ambiente tão contemplativo e caí no choro. Na missa
sem ver o padre, cochichei nas ouças de minha alma;
Pelo amor
de Deus, minha alma, o que está havendo?
Minha
alma expressou-se num dialeto com o Sr. Conforto e pôs as mãos nos meus olhos. Calma,
meu anjo. Vamos ali, disse. Gente, se se passou cinco segundos foi muito. Estávamos
numa praça de futebol. Arena lotada, todo o mundo em pé, de branco, música
sacra ao fundo, jogadores se aquecendo. Risadeira geral.
Nossa! Espetáculo de outro mundo,
minha alma. Comentei e perguntei:
Por que o time de verde está de
chapéu e alguns de colete usam microfone? Parecem tão felizes?
E estão, meu anjo. A alma deles não
é pequena. Estão fazendo o que gostam, entendeu? Olha só, chegou o treinador. Vai
começar a preleção. Vá lá, meu anjo.
Eu? O treinador, minha alma, é parecido com o Sr. Conforto.
É ele mesmo, meu anjo. Vá lá. Você precisa participar
da preleção a fim de resumi-la para o povo lá de baixo.
Fui. Gostei do que ouvi. Mas senti
medo ao retornar e não encontrar a minha alma. Estaria morta? Teria ido se refrescar
nas trevas?
Nada disso, gente. Minha alma tinha
ido apanhar as visitas que ficaram em nosso quartinho.
E aí, meu anjo. O que o Sr. Conforto disse?
Não posso falar para vocês. Cumpro ordens.
Mas posso dizer que estou feliz e
cheio de abraços e beijos para repassá-los. O Sr. Conforto é um baita treinador.
Isso basta,
falaram todos ao mesmo tempo, batendo palmas.
As
palmas da Sra. Solidariedade sobressaíam.
Dezembro/16,
mais parecendo um ano que não acaba,
TC