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LINDÍSSIMA E CRUELÍSSIMA
Antes de nominar essa superlativa
criatura, permitam-me quatro dedinhos de prosa. Quero prosear sobre a radicalização
de certos críticos/resenhistas da literatura ficcional brasileira. Essa gente administra
pavorosa fogueira literária e gerencia arrepiador pau de arara das letras. Donos
da verdade, ordenam:
“O texto precisa ser enxuto, conciso,
moderno. Fuja dos arcaísmos. Corte palavras que estão ali só para engordar o
texto. Adjetivos, gerúndios e advérbios, por exemplo”.
Para essa patota, apenas
substantivos e verbos têm vez. Só porque pouca usadas, chamam de arcaicas certas
expressões. De mais a mais, porquanto, conquanto e quiçá são habituais
frequentadores de seus paus de arara. Adjetivos, gerúndios e advérbios vivem de
lombo esfolado de tanto espernearem na fogueira deles.
Trata-se de opinião, concordo, mas
de forte influência para certos escrevinhadores. Resultado: texto estéril, apenas descrições da
aridez cotidiana.
Há poucos dias, num jornal do
Sudeste, impiedoso resenhista mostrou-se cozinheiro de adjetivos ao comentar
este fragmento de um conterrâneo: “... A mulher, além de bonita, era linda e
charmosa. Com seus trinta e quatro anos, suas bochechinhas rosadas, seus olhos azuis,
suas curvas perfeitas...” O resenhista tachou o excerto de gordurento, vejam
só, em razão da série “bonita, linda, charmosa”. Desperdício. Bastava uma
palavrinha dessas, escreveu o moço.
Na frigideira do mestre-cuca não
havia um pingo de gordura nos “seus trinta, suas bochechinhas, seus olhos, suas
curvas”. Questão de estilo, dirá alguém, mas, porra, nem sequer um comentário a
respeito do excesso dos possessivos pronominhos? Ele podia ter temperado o
fragmento assim: “Além de bonita, era linda e charmosa. Trinta e quatro anos,
bochechinhas rosadas, olhos azuis, curvas perfeitas...”
Não há gordura nos adjetivos, porquanto
bonita, linda e charmosa expressarem conceitos distintos, conquanto
equivalentes na fala do dia a dia. Do ponto de vista masculino, bonita é a
mulher de linhas faciais harmoniosas e pronto. A mulher linda vai além. Ela carrega
boniteza no rosto, transporta simetria no corpo e caminha com sutil rebolado,
haja a vista o excesso de beleza espalhada por todos os cantos. Já charmosa é a
mulher simples, sedutora, graciosa, cativante. Atitude em detrimento do físico.
Daí que a mulher pode ser bonita ou linda, mas pedante, de charme zero - a
chamada cu doce. Ou nem tão bonita, contudo carismática, encantadora, de charme
dez, também conhecida por dama.
Merece pena máxima o resenhista por
ter jogado na fogueira os inocentes adjetivos, já que, certamente, a personagem
de seu conterrâneo preenchia os atributos de bonita, linda e charmosa. E, em
nome de pretensa concisão, autor algum deve prejudicar a precisão. Dez para a
tecnicidade do autor.
Ah, ia me esquecendo de um detalhe:
a mulher lindíssima. Lindíssima é a mulher linda e charmosa. Ela representa o pico da imaginação masculina.
E, por vezes, o vértice da feminina.
FIQUEM AGORA COM A
LINDÍSSIMA E CRUELÍSSIMA
(E que certos resenhistas não me
leiam, porquanto abunda aqui tudo o que para eles é excesso)
Oi, meu nome é Kélvia, mas
os
amigos me tratam por Ké. Adoro os dois nomes. Contudo, o que amo, mas amo mesmo,
é o lindíssima. Fico toda ancha ao ouvir o “Oi, lindíssima”. Tenho trinta e quatro
anos, bochechinhas rosadas, olhos azuis, curvas perfeitas. Sou médica com especialização
em gastroenterologia. Fiquei
viúva há cinco anos, quando um assaltante assassinou o meu marido na minha
frente. Tirou-me o marido e a saúde mental. Vivo me equilibrando entre coragem
e medo. Em determinados momentos, sou fria e cortante tal qual uma pedra de
gelo. Noutros, sou cortada pedra de gelo derretendo pavor.
Agora, por exemplo, cinco horas da
tarde, o sobrosso começa a me aquecer. Estou parada num vermelho de trânsito,
uma moto ao lado, os passageiros me estudando, pois me esqueci de levantar os
vidros do carro.
Levanto os vidros, o verde surge,
arranco, a moto vem atrás. Vermelho seguinte, e seguinte, e seguinte, e a motocicleta
atrás, adverte-me o retrovisor. Diminuo a velocidade, a motoca também. Vou dar
um quinau neles. Vou voltar para a clínica, penso. Penso, ajo. Estou fazendo um
retorno proibido e voltando.
A moto sumiu. Ufa!
Pego
outro caminho. Segundo vermelho e a infeliz aparece atrás de mim. Não dera o
quinau. Vermelho seguinte, e seguinte, e seguinte, e a maldita atrás. Não restava
dúvida: vão me assaltar. As pernas tremem, o sobrosso agora é pânico, o corpo é
gelo, é suor frio. Paro num posto de combustível. Só Deus sabe como estou
descendo do carro. Exponho minha aflição
ao bombeiro, que me aconselha ficar um tempinho na conveniência do posto.
“A bonitona cabritou, Paulão. Para nessa
rua lateral. Vou lá no posto tirar o serviço dela. Esse Honda é o ideal, boy. Fica
aqui”, disse o carona da moto, Daniel, trocando a camisa - a do Flamengo, a que
estava usando por cima, foi pra baixo, e a que estava usando por baixo, uma branquinha,
foi pra cima.
Daniel foi direto para a lojinha.
Compraria uma barra de cereais e faria sintomática cerinha com a intenção de localizar
a bonitona. Não precisou da cera, já que Kélvia conversava com a gerente da
loja. Passados alguns minutos:
- Desculpe interromper, moça, mas
não pude deixar de ouvir o seu aperreio. Meu nome é Pedro, sou policial civil. A
senhora pode me dar detalhes da perseguição desses vagabundos?
Daniel apresentava-se exibindo
fajuta identidade policial.
- Ah, meu pai. Graças a Deus. É que
uma moto, moço...
Foi assim que Daniel ficou ciente
do que fora protagonista e Kélvia tomou ciência de que Pedro e um parceiro
patrulhavam aquela área. Estavam no encalço de dois meliantes que, de moto,
eram especialistas em tomar carro de mulher. E foi também assim que Kélvia
ouviu o galanteio:
- Mas, nesse caso, e com o devido
respeito, os ocupantes da moto podiam estar apenas admirando a sua beleza. A
senhora é lindíssima, moça.
Bom, discutida a questão segurança,
amizade se instalando, ficou combinado que o policial deixaria Kélvia no
apartamento dela. Iria dirigindo o Honda Fit, posto Kélvia ter discordado da sugestão
de ela dirigir e, a fim de surpreender os assaltantes, Pedro ir escondido no
banco traseiro.
“Está bem. Vou pedir que meu
parceiro nos siga”, concordou Daniel, afastando-se um pouquinho. Enquanto Kélvia
se despedia da gerente, Daniel vangloriava-se:
- Escuta, boy. Foi mais fácil do
que eu pensava. Depois te falo. Agora sou polícia, Paulão. Vou deixar a gostosona
no apartamento dela, no bairro das Sétimas. Fica ligado. Vou obrigar ela descer
ali pertinho do estádio. A gente se encontra no Dudu. Valeu, boy.
Kélvia colocava o cinto, puxava
conversa:
- Cinco e meia. O trânsito deve
estar horrível. O senhor é daqui de Natal mesmo? Conhece as Sétimas? Pode ir
pelo prolongamento. Ah, o senhor é quem sabe.
“Conheço o bairro, senhora Kélvia.
Já morei lá. Vamos pelo prolongamento”, concordou o simulacro de policial,
tirando horroroso revólver da virilha, pondo-o embaixo da perna esquerda e
olhando descaradamente para as coxas da passageira. Por querer se mostrar ou
por burrice, certo é que Daniel cometia escancarado erro, pois policiais usam
armas modernas e não um enferrujadão daqueles. Assim também pensou Kélvia,
dando início à caçada de minúcias.
Caçar minúcias é essencial na vida
de todo mundo. Devemos praticar esse esporte a fim de capturarmos sofismas e fugirmos
de alguns sofrimentos. Vejamos o que Kélvia capturou:
Nossa, que arma mais feia! Parece o
revólver do assaltante que matou meu marido. Será mesmo policial? Por que
chegou à lojinha tão logo cheguei? Gesticulava e ria ironicamente quando avisou
ao parceiro que ia me deixar em casa. Parecia brincar. Agora olha paras as
minhas coxas parecendo um tarado. Estou até com medo de que não bata o carro.
Kélvia raciocinava. A pedra de gelo
que derretia temor começava a ficar pontiaguda e cortante. Afiada lâmina
erótica cortava-lhe o medo. Puxou conversa:
- Não está vendo ninguém nos
seguindo não, né? Com o senhor dirigindo, eles devem...
- Não estão doidos não, senhora
Kélvia. Escute, tenho trinta e dois anos, mais ou menos a idade da senhora. Por
que não me chama de você?
Acontece que ao se virar para
responder, Daniel entregava a Kélvia suculenta caça de minúcias. Um botão da
camisa havia se desabotoado, fazendo com que ficasse exposta parte da camisa de
baixo: o denunciante escudinho do Flamengo.
Camisa do Flamengo. A camisa do
carona da moto que me seguia. Ah, bandido. O miserável quer por quer o meu
carro. Então, contraditoriamente feliz, excitação se instalando, Kélvia ri e
faz o jogo dela:
- Só o chamo de você, amável
protetor, se deixar de me chamar de senhora Kélvia.
- Já deixei, amável protegida
Kélvia.
O assanhado falou e logo botou a
mão na coxa esquerda da protegida.
- Cuidado para não bater o carro e
matar uma pobre viúva.
- Bato, não. Taí um homem que não
bate. Sabe, Kélvia, você é muito gostosa. Você é viúva, é? Há quanto tempo? Tem
filhos?
Neste ponto, ao ouvir a palavra
gostosa, Kélvia atinge o estágio da completa frieza mental e dá início ao
processo da plenitude orgástica, da sensação prazerosa do sexo. Processo que só
termina quando... Veremos já.
- Ah, Pedro. Você me deixa
encabulada. Enviuvei faz cinco anos. E não tenho filhos, infelizmente. Moro
sozinha, Pedro.
- E é!?
O e é saiu com ênfase fora do
comum. Até porque a voz de Kélvia era de extrema luxúria. De mais a mais, Pedro
via no “moro sozinha” um convite, um abre caminho libidinoso. Daí não ter
titubeado:
- Estou esperando o convite para
tomar um viozinho no seu apartamento.
- Sei não, Pedro. Nunca levei homem
ao meu apartamento. Sou meio careta, entende? Mas não sou ingrata. Você está me
prestando um grande favor. Agora, seria bom eu chegar dirigindo. Você vai no
banco traseiro, encolhidinho, pois preciso me apresentar na cancela do condomínio,
compreendeu?
Mal entraram na cobertura e as
línguas puseram-se a se cobrir. Fingindo-se apertado, Pedro, ou melhor, Daniel,
pediu para ir ao banheiro.
Kélvia o levou e voltou rindo. Sabia
que ele ia apenas encontrar uma forma de livrar-se da camisa do Flamengo. E
encontrou: fez um embrulhinho e a escondeu no bolso traseiro da calça. Voltou
faceiro e pronto para os apertos.
Mas não passaram de juvenis
apertos. A metódica Kélvia tinha planos.
- Não, Pedro. Desculpe. Aqui não
rola não. Pode até rolar, mas...
- Mas o quê?
- Tenho vergonha, Pedro. Desculpe.
Além disso, tenho uma fantasia. Tenho uma fantasia, Pedro. Nunca falei isso para
homem nenhum. Mas com você, acho, você... Vou falar. Tenho a fantasia de
transar num carro, num local deserto, onde o carro possa se balançar e ninguém xeretar.
Se você... Depois podemos até ir a outro lugar, mas... Pronto, falei
- Feito. Vamos. Conheço uns três
locais assim, Kélvia.
- Seis horas. Não é muito cedo não?
- Não. A gente só vai chegar lá pra
sete horas. Lá é deserto. Não tem perigo.
- Então vou me arrumar.
Kélvia saiu cantarolando, Pedro
ficou sonhando. A bela voltou de vestido preto, curvas no cio. Pedro não se
segurou:
- Nossa! Que gata é essa! Você está
pronta para matar, Kelvinha.
- Obrigada, querido. É apenas um
vestido preto numa pobre viúva. Vamos?
Foram.
Mas apenas a Kélvia voltou.
Passados dois dias, ela lia no
jornal local:
A FACA DE SERRA ATACA NOVAMENTE. O
CORPO DE DANIEL...
&&&&&&
O novamente da manchete, leitor, é
porque aquele era o sétimo corpo encontrado em cinco anos com uma faca de serra
enfiada no coração.
A série teve início depois que um
assaltante matou o marido da Kélvia, o Tavares, cinco anos atrás. O casal ia
entrar no automóvel quando anunciaram o assalto. Já com os pertences do casal, um
dos bandidos (eram dois) descontrolou-se: vou comer essa gostosa, falou, agarrando-se
com a Kélvia. O Tavares voou para cima do tarado, o que fez o outro bandido a atirar
nele, Tavares. Kélvia correu ouvindo os gritos de volta aqui, gostosa, vou te
pegar, gostosa.
A partir daquele episódio, Kélvia
passou a amaldiçoar assaltantes e a sentir-se mal com a simples audição do
adjetivo gostosa. Transtorno atípico, porque, quando protagonista, a exemplo do
caso ora narrado, ela dá início a um processo de extrema excitação, só o encerrando
ao transar com o bandido. Não transa, na verdade. Na verdade, o que ela quer é ver
o sangue do bandido a mapear o V da vingança. É o sangue desenhando e ela se
contorcendo de prazer. Intensos e infinitos orgasmos chegam a lhe mostrar o
marido batendo palmas.
O caminho macabro mantém-se
inalterado. Kélvia não seleciona as vítimas. São as circunstâncias, quiçá
boladas pelo coisa-ruim, que as fazem entrar na vida dela. Kélvia direciona o
coito para um lugar deserto, besunta a princesa com incolor substância,
veste-se com provocante vestido preto, põe enferrujada faca de serra na bolsa e
sai beijando o infeliz. Em contato com a língua, a incolor substância (fórmula
criada por ela) faz o língua santa ficar grogue em segundos. O trabalho da
Kélvia, então, é enfiar a faca de serra no coração do língua santa e empurrá-lo
do carro.
&&&&&&
Kélvia pôs o jornal de lado e
comentou em voz alta: Mandamos mais um para o inferno, Tavares. O sétimo.
Engraçado, amor, como esse pessoal não tem criatividade. Apresento-me com
aquele vestido que você adorava, o preto justinho, e logo dizem que estou
pronta para matar. Será que eles nunca estão prontos para morrer?
Agora segure-se na sela. Acabo de
saber que o nosso sete se chamava Daniel. Esse Daniel foi o taradão do assalto,
o que me chamou de gostosa. Como há tempos lhe informei, o peste fugiu da
cadeia no dia seguinte ao da prisão. Pois não é, Tavares, que o peste me chamou
novamente de gostosa? Dá para acreditar nisso?
Destino, não? Sabe, amor, os senhores do destino devem viver de porre.
Por isso, nem sabem que botão estão apertando. Taí uma profissão boa, concorda
comigo? Já que nunca erram, nunca serão demitidos. Tem como errar o destino de
alguém? Não tem, Tavares. Qualquer botão tem serventia, não é, amor?
Não reconheci o tarado, juro. Mas a
voz dele me parecia familiar. Cinco anos, não é, amor? De mais a mais, ele
dizia chamar-se Pedro e não Daniel. Matei-o como Pedro, porquanto o Satanás ter
usado esse nome na carta de recomendação a mim, entregue lá no posto de
combustível.
Janeiro/17, sem carta de
recomendação alguma, mas com forte abraço,
TC
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